A PROVENCE E SUA PAISAGEM OLFATIVA

04.03.2020 em Cultura.
Autor do post: Lila Guimarães, jornalista e colaboradora da Donato.

Andamos nostálgicos em ver de perto as maravilhas do mundo e também esperançosos de que logo voltemos a nos encontrar com elas. Por agora, a viagem acontece através de lembranças e relatos, histórias e particularidades de lugares que inspiram e trazem leveza, como os aromas, os perfumes.

Da Provence, que é sem dúvida uma das regiões mais charmosas e poéticas do planeta, vem a lavanda usada pela indústria de perfumaria europeia e pelas marcas mais icônicas do mercado. Para falar sobre ela, conversamos com Dênis Pagani*, especialista em perfume, consultor, professor e autor do blog referência no assunto 1 Nariz.

Esperamos que a leitura traga boas sensações e, quem sabe, cheiros borrifados direto de uma memória afetiva que cada um guarda reconditamente.

BLOG DONATO: Lavanda é “cheiro de limpo e de conforto”, como você já escreveu. O que mais particularmente gosta na lavanda?

Dênis: No perfume da lavanda eu gosto muito da complexidade de como ele é canforado e gelado no início e depois ele se torna mais adocicado e suave, meio caramelado, dá a impressão que vai colar no dente como uma bala. Eu gosto dessa transformação, dessa riqueza da matéria-prima natural.

BLOG DONATO: Qual o seu perfume favorito com lavanda na composição?

Dênis: Gosto muito do Jicky da Guerlain, do fim do século XIX. Ele tem uma super lavanda, mas tem também uma grande dose de cumarina. Foi revolucionário naquele momento porque foi o primeiro perfume a usar uma grande dose dessa matéria-prima que tinha sido sintetizada recentemente e que é a principal matéria odorante da fava-tonka, a semente do nosso cumaru. Ao mesmo tempo, ele tem esse herbal, esse lado mais adocicado da lavanda, mas com a particularidade por ser um perfume antigo e francês ele tem uma dose gigantesca de uma matéria-prima chamada civet, extraída de uma glândula de um mamífero chamado civeta e que tem um cheiro fecal, pois é, não tem outro jeito de descrever. Ele é um perfume muito complexo e interessante, muito inovador no seu período e foi feito para todos. Foi criado por um perfumista homem para as mulheres, mas foi adotado largamente pelos homens e se tornou um certo emblema de perfume clássico masculino francês. Esse é o meu favorito, mas o que eu mais uso é o Por um homme da Caron, que é mais simples. Ele é nada mais do que lavanda e cumarina. Talcado, amendoado, tem baunilha, é muito delicado, alinhado, um perfume dos anos 30.

BLOG DONATO: Na Europa a lavanda é mais associada a perfumes masculinos e aqui no Brasil são a base de produtos femininos e infantis. Por que acha que isso acontece?

Dênis: Essa diferença da lavanda ser masculina no exterior e feminina no Brasil tem a ver com as nossas alfazemas antigas, produtos com cumarina também, delicados, adocicados, envolventes. Nos cursos que eu dou, quando apresento o Caron quase todo mundo acha que é feminino, porque ele traz uma doçura, uma calma e sensibilidade que a gente associa aos perfumes femininos. Acho que foi por aí que essa relação foi se estabelecendo entre as lavandas nacionais e os perfumes femininos e infantis. Conversando com uma amiga brasileira que mora em Madri, ela me contou que lá os perfumes para criança são feitos de flor de laranjeira, que é um cheiro um pouco mais úmido para um lugar que é seco. Aqui essa nota cumarina é talcado, o que dá um aspecto mais seco, então pode ter uma questão climática também, como o nosso país é úmido fica confortável usar uma fragrância mais seca.

BLOG DONATO: Conhece a Provence? E como é o aroma de lá?

Dênis: Eu conheci a Provence com 14 ou 15 anos. Não fui a um campo de lavandas e o perfume ainda não era a minha profissão, mas tenho uma memória bem clara de andar pelas cidades especialmente em Les Baux, que a cada passo tem um cheiro diferente. Era um dia quente, então o sol ajuda a evaporar e volatilizar os óleos essenciais. Você anda um pouco e sente um cheiro de erva de mato ou de alguma erva densa, terrosa, como tomilho. Anda mais um pouco e vem um cheiro doce de mel de flor, depois você vê a flor cheia de abelhas. A vegetação é mais baixa, meio retorcida, não é folhoso, tropical e exuberante, mas tem uma paisagem olfativa muito viva.

BLOG DONATO: Na Provence, existem outros aromas, flores ou matérias-primas usadas na perfumaria. Conta mais sobre isso?

Dênis: Lá tem toda uma família botânica que é tratada como a família de ervas do Mediterrâneo, tem a lavanda, o tomilho, o louro. É uma região muito quente durante o dia, a noite muito fria com vento, propícia para esse tipo de planta que tem a produção de óleo essencial como estratégia de defesa. A intenção do óleo essencial é evitar a contaminação de fungo e bactéria na planta ou expulsar possíveis predadores. Tem um cheiro ou um gosto forte quando é mordido e consumido, é legal saber que essa concentração de óleo essencial na planta varia de acordo com o ciclo reprodutivo dela. Ela vai se intensificar nos momento de reprodução, de gerar flor e semente para defender a planta.

BLOG DONATO: Qual a relação da indústria de luxo da perfumaria com a região?

Dênis: A cidade da Provence que é o símbolo, o berço da perfumaria, é a cidade de Grasse por conta de seus curtumes. Existia uma indústria de couro importante ali e para curtir o couro se produz cheiros horríveis. Esses artesãos e fabricantes passaram a recorrer às ervas e flores da região para disfarçar esse cheiro incômodo do couro recém-curtido. A indústria da perfumaria nasce como um acessório da indústria do couro e acaba tomando um caminho próprio. Ainda não conheço Grasse, mas sei que existe o Museu do Perfume, vários cursos de especialização para perfumistas e até oportunidades para o turista ter experiências ligadas ao perfume, como ter aulas sobre matérias-primas e montar o seu próprio perfume. A indústria de perfumaria de luxo usa muito a cidade como um local quase mitológico, eles contam que usam muito especialmente as flores rosa e jasmim e a gente já sabe que a Chanel tem fazendas próprias e comprou alguns fornecedores para manter essa produção ali. A Dior faz bastante uso das matérias-primas da região. Grasse, como todo o sul da França, é uma região especialmente visitada no verão, dizem que a produção de óleo essencial e matéria-prima para perfumaria ficou um pouco ameaçada pelo perfil da cidade de veraneio e por isso a intenção da Chanel em comprar esse fornecedor, para garantir ali a existência ainda dessa atividade.

BLOG DONATO: Qual o futuro da lavanda na perfumaria? Tem algum palpite?

Dênis: Acho que a lavanda está pronta para ser reinventada. A gente não vê tanto perfume sendo lançado com lavanda bastante evidente, a não ser alguns masculinos clássicos ou se inspirando no clássico ou umas ideias muito comerciais e já muito surradas. Mas acho que está na hora dela ser reinventa como o patchouli foi reinventado com o Angel. O patchouli passou a aparecer brutalmente nos perfumes femininos como um contraponto de força e de estrutura para perfumes que são bastante doces e intensos. Talvez num caminho assim a lavanda pode ser reinventada. Hoje ela é mais usada nos masculinos por esse efeito mentolado, canforado e talvez esse efeito pudesse aparecer num perfume feminino. A perfumaria usa muito desse recuso de cruzar gêneros como forma de trazer inovação como o Dior homme — que é um perfume floral super delicado, atraente, calmo e nada viril, no contexto da imagem clássica de um perfume viril, algo que avança no outro, gelado, rasgante. As pessoas descrevem como cheiro de maquiagem, com muita frequência também apresento ele nos cursos e a maioria acha que é um perfume feminino. Acho que esse cruzamento, essa mudança de contexto é um jeito de trazer criatividade para a perfumaria e a lavanda pode se beneficiar e injetar criatividade no mercado sendo trabalhada desse jeito.

*Dênis Pagani é especialista em perfumes e fala desse assunto tão subjetivo de forma viva e interessante. É o criador do 1nariz.com.br, site que desde 2012 abriga artigos sobre tudo aquilo que acontece ao redor do nariz. Também oferece um serviço de consultoria pessoal em que recomenda perfumes a partir do desejo e estilo de vida de cada cliente, cursos de cultura do perfume, além de talks, treinamentos, palestras e consultoria para empresas.

Foto: Léonard Cotte, no Unsplash

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